A extração dos dentes é considerada uma consequência do agravamento das doenças bucais mais prevalentes, dentre elas a cárie. Mas na prática, ela acaba sendo uma solução definitiva para a dor, criando uma nova condição de vulnerabilidade: a de não ter dentes. Além disso, ela produz uma falsa expressão da economia política no sujeito e cria a ilusão de restabelecimento de saúde.
Uma doença não se limita a uma evidência apenas orgânica, natural e objetiva, mas engloba vivências individuais e coletivas de cada sociedade, portanto, é também realidade construída, sendo o doente um personagem social.
Assim, as condições socioculturais têm sido, nos últimos tempos, enfatizada como importante na avaliação da cárie dentária, sendo o indicador socioeconômico um de seus fatores de risco, especialmente no Brasil. A baixa renda pode ser associada a menos acesso aos serviços odontológicos e aos produtos de higiene, também ao menor conhecimento sobre os corretos hábitos de higiene bucal e consequentemente à alta prevalência e severidade de cárie dentária.
Na maioria dos países desenvolvidos, a prevalência da cárie apresentou uma tendência de declínio nas três últimas décadas do século XX e no início do século XXI. No Brasil, essa tendência não foi diferente, entre 1980 e 2003, a redução nos valores do índice CPOD mostra uma tendência consistente de queda ao longo do período, que corresponde a um declínio de 61,7%.
Um bom indicador para saúde bucal é o número de pessoas livres de cárie. Para essa avaliação a OMS sugere os 12 anos, como idade índice. Os resultados dos três inquéritos apontam, aos 12 anos, um aumento das crianças livres de cárie de 3,1%, em 1986 para 31% em 2003, alcançando 44% em 2010, dado considerado favorável.
Contudo, o bom resultado não atinge toda a população. A prevalência de cárie dentária reflete fatores determinantes de ordem biológica, alimentar, comportamental e socioeconômica, assim como fatores de acesso a bens de consumo e a serviços de saúde. Nesse sentido, a cárie dentária é descrita como uma “doença social”.
O pior desfecho para a doença cárie é a perda dentária. Cientificamente, a extração dos dentes é considerada uma consequência do agravamento das doenças bucais mais prevalentes, entre elas a cárie. Mas na prática, ocorre como solução definitiva para a dor, sendo motivada principalmente pela falta de acesso aos serviços de saúde, bem como recursos e à condição socioeconômica. A incoerência fica evidente no fato de que a extração é realizada pelo próprio serviço de saúde; portanto, para a extração não faltam recursos nem acesso.
Considerando o sentido da palavra perda como “desaparecimento, extravio”, entende-se que os dentes não desaparecem ou se extraviam, mas são efetivamente extraídos.Por outro lado, essa perda não se configura na maioria das vezes como tratamento indicado clinicamente, segundo os parâmetros científicos atuais. Sendo motivada por problemas sociais, a mutilação bucal pode ser vista também como uma mutilação social.
Historicamente, a extração é uma forte ancoragem de enfrentamento às realidades de dores dentárias produzidas nos mais diversos contextos sociais. Considerando que o contexto brasileiro de marcantes desigualdades sociais se expressa no sujeito é importante refletir se o recurso de extração para a eliminação de sintomas é uma ação ética no âmbito da proteção à saúde pública.
No entanto, a extração é uma estratégia produtora de uma nova condição de vulnerabilidade: a de não ter dentes, como consequência do plano de tratamento. Ainda que sustentada por uma vertente positiva, a eliminação da dor local, essa estratégia produz uma falsa expressão da economia política no sujeito e cria a ilusão de restabelecimento de saúde. Além disso, alimenta um farto mercado: o consumidor, já que a produção de saúde (diante de dentes perdidos) passa a galgar expressão no consumo das próteses dentárias.
A desigualdade no Brasil, parece ter se transformado num retrato banalizado, fruto do conformismo. O problema cárie dental ainda persiste no Brasil, exigindo a implantação de outras medidas pertinentes e que legitimam o papel do Estado como protetor da saúde pública, proporcionando aos cidadãos em estado de vulneração dispor de ações, além do investimento nos serviços odontológicos, conforme as suas necessidades.